Outros Aventureiros

REVISTA DUAS RODAS Nº 96 - JUNHO - 1983

Há um mundo de fantasias dentro de cada pessoa. Viajar de moto é uma delas. Para alguns, ela se transforma numa irresistível atração do desconhecido - e eles partem pelo simples gosto da aventura...

O inverno russo é rigoroso e Moscou não fica a menos de 40 mil quilômetros do Brasil. Em sua empresa em Palhoça, a oito quilômetros de Florianópolis - SC, João Gonçalves, o "Gaúcho", faz as contas, consulta os mapas. E decide: se sair em junho, chega lá antes da neve, que cai em dezembro. Parece que nem passa por sua cabeça que ele não sabe nem uma palavra em russo, que seu vocabulário em inglês não vai além de vinte palavras ou que no caminho há nada menos que 41 países, só na Europa.
- Pelo que sei nenhum brasileiro já entrou na Praça Vermelha de moto, tirou uma foto e voltou.
Quem conhece o Gaúcho sabe que é isso mesmo que ele vai fazer: entrar em Moscou de moto. Vai, não. Já está indo, numa Honda XL-250, 5 mil dólares no bolso, sem saber o que poderá enfrentar na Polônia, na Hungria, ou na Tchecoslováquia.
Ser o primeiro a entrar na URSS de motocicleta é só o que importa - o mesmo desafio que o levou a cruzar os 3.800 quilômetros de barro e selva da Transamazônica, em 1976, numa Harley Davidson de 1200cc. Também foi o primeiro a realizar a proeza de moto.
- Ou você sai, ou capenga no meio da multidão - diz o paulista Antônio Carlos Cappicci, outro aventureiro.
Para a maioria das pessoas, essa estranha compulsão de sair pelo mundo de moto, longe do conforto de um hotel, avião, ou até da proteção de um carro, é simplesmente loucura. As pessoas criam raízes. Mas chega um momento em que as raízes parecem sufocar:
- Trabalho 14 horas por dia, - comenta Gaúcho - e há uma hora em que sinto que se não pegar a estrada fico louco. É a minha válvula de escape.
Gaúcho é dono de uma empresa de máquinas para lavar ônibus, tem 36 anos, quatro filhas, e há oito anos casado com Sílvia ("minha Amélia do ano 2.000"). Enquanto ajeita o nó da gravata, "exigência da profissão" - ele vende máquinas operatrizes, como tornos e fresas, para grandes empresas - Antônio Carlos, 29 anos, também recorda a viagem de 11.000 km que fez há dois anos, numa Honda XL-500, comprada em Los Angeles ( EUA ):
- Meu sonho era conhecer o México, encontrar os índios, bruxos e o D. Juan dos livros de Carlos Castañeda (da linha ocultista). Sempre fui muito sensitivo e acho que o sonho e a realidade são a mesma coisa. É sonho para alguns, realidade para outros.
Um dia, em março de 1981, acordou e disse: EU VOU. Largou o emprego, as raízes, a segurança de um namoro de seis anos com Shalma e, de repente, se viu nos Estados Unidos, pronto para iniciar a grande aventura.

PRÊMIOS NO PERU

Nessa mesma época, no outro lado do mundo, na pacata cidade alemã de Bremen, o professor de eletrônica Wolfgang Reiche, de 34 anos, e Grudun Brar, de 30 anos, começaram a realizar o mesmo sonho antigo. Não queriam ser os primeiros em nada, nem sentiam uma compulsão incontrolada de procurar mistérios em outras terras.
Wolfgang e Grudun queriam apenas fugir da rotina, conhecer o mundo, outros povos. De bicicleta...
- Cheguei a uma fase decisiva da vida - contou Wolfgang. Algum tempo atrás não podia fazer essa viagem porque não tinha dinheiro e precisava estudar. Daqui a alguns anos estarei velho demais para viajar de bicicleta. Interrompi dois anos de minha vida para essa aventura. Quando voltar, começo de onde parei.
Se tivesse dinheiro, teria partido antes. Mas a falta de dinheiro nem sempre é uma barreira. Pelo menos não foi para o Zé do Pedal, o mineiro de Viçosa, José Geraldo de Souza Castro, que em 1978 saiu de bicicleta com dez mil cruzeiros no bolso, percorreu as Américas e a Europa, viu a Copa do Mundo e voltou para casa com 800 dólares.
Ele fez de tudo no caminho - ganhou prêmios numa maratona a pé, no Peru, pediu ajuda num programa de televisão no México e, trabalhou para o Instituto Brasileiro do Café, em Londres. Zé do Pedal está novamente na estrada, com uma bicicleta nova e o patrocínio da US Top, uma carta de recomendação assinada pelo presidente João Figueiredo e, o que é muito importante, com a incrível experiência da viagem anterior. Dessa vez, quer correr o mundo todo.
São coisas que não se aprendem na escola, desafios à capacidade humana de suportar e resolver situações inesperadas. Foi o que sentiram Paulo Roberto Grisólia e sua mulher Felícia, em dezembro de 82, a caminho dos Andes, quase na fronteira entre Argentina e Chile, quando a Honda 750 F em que viajavam parou, com pane elétrica. De volta ao trabalho em Jacutinga (MG), onde mora, Paulo lembra, agora com bom humor:
- Depois de uma hora e meia procurando o defeito, comecei a ficar preocupado. Não podia deixar minha mulher e a moto sozinhas na estrada para sair em busca de socorro. Resolvi jogar a última cartada.
A tentativa final foi ligar um fio de arame direto no sistema elétrico e, apesar do risco de queimar tudo, ver onde saía fogo. Ligou e sentiu na hora o cheiro de queimado na chave de ignição: o peso da mochila colocada sobre o tanque forçara um fio, que entrou em curto. Foi só isolá-lo e a viagem continuou.
Sozinha numa viagem de férias, no final de 81, a médica carioca Iaci Mariano da Silva também descobriu os encantos da paisagem do Sul do Brasil e, dentro de si mesma, um faro inesperado para localizar defeitos em "Abigail"- sua Honda CB 350, que percorreu nessa viagem 6.581 quilômetros ajustando corrente, consertando pneus, fixando pára-lamas e trocando peças.
Iaci, na época diretora médica da Associação dos Motociclistas do Rio de Janeiro, certamente encontraria companheiros para a viagem, se quisesse. Não quis. Há momentos em que a solidão é enriquecedora, permite um contato interior e com a natureza.

"A GENTE SE ENCONTRA"

A solidão para quem está numa moto, entretanto, é sempre relativa. Em todo o mundo, os motociclistas cultivam o saudável hábito da solidariedade, uma linguagem própria e ao mesmo tempo universal que aproxima as pessoas. E conhecer pessoas novas é outro sabor de aventura.
Ainda cheio dos eflúvios das místicas ruínas Incas de Machu Picchu, plantadas num altiplano 5.000 metros acima do nível do mar, nos Andes peruanos, o paulista Luís de Castro Filho, estudante de arquitetura, voltou abruptamente à realidade em Lima, quando sua Yamaha RD 350 foi roubada. Também o salvou um grupo de amigos motociclistas que deram a notícia num programa de televisão e logo alguém informava onde a moto estava.
Luís sentiu que nessas ocasiões a vida parece um fio que alguém estende, junta a outros mais a frente, ou separa adiante. Quando escolhia a moto para a viagem, ainda em São Paulo, no final de 1975, encontrou-se na Yamaha com outros dois aventureiros - o cineasta Pedro Deperon e o musico Sérgio Werneck, que como ele, pretendiam subir a América Latina e chegar aos Estados Unidos em duas Yamaha 650 XS2.
- É! quem sabe a gente se encontra algum dia pelo caminho - brincou Luís, que entrou pelo Mato Grosso, cruzou a Bolívia e saiu no Peru, enquanto Pedro e Sérgio seguiram outra rota: Porto Alegre / Buenos Aires / Mendoza / Santiago e Lima. Na fronteira boliviana, Luís passou por Denise Labarthe, uma brasileira que também seguia pelos caminhos latinos - americano, de carona.
Os quatro acabaram reunindo-se ao acaso em Lima, prosseguiram juntos e Denise ficou com Sérgio durante e depois da viagem.
Simples coincidência? Talvez seja, mas são esses detalhes que aumentam o colorido, que tornam a aventura diferente de um mero passeio de turismo. São imagens e experiências que o colombiano Marco Antônio Navas acumula em álbuns de lembranças de viagem. Com a imaginação povoada de fantasias de Júlio Verne, dos piratas de Emílio Salgari, das proezas do capitão Blake, de Marco Polo e Simbad, o Marujo. Navas largou a mulher, três filhos e um emprego na Colômbia, em 1969 e foi, finalmente, dar sua volta ao mundo.
Só que não gastou 80 dias, como o Fileas Fogg, de Verne. Levou nada menos que onze anos apenas para iniciar o retorno a seu país. Havia rodado 140 mil km e, no meio do caminho ainda casou dois dos filhos, que o acompanharam em trechos do percurso.
A recompensa por tanto desconforto quando se viaja com pouco dinheiro, dormindo em acampamentos improvisados, atrapalhando-se com as placas em língua estranha, pode ser incompreensível para a maioria das pessoas. Para Ivan Moura de Oliveira e Galeno Pupo, que foram de São Paulo aos EUA com duas Gilleras 175cc, em 1972, a recompensa foi tomar um banho no rio Quillagua, em pleno deserto do norte chileno, depois de três dias sem água.
Para Antônio Carlos Cappicci, conhecer o deserto mexicano, realizar o sonho, compensou até a broncopneumonia que pegou em Tapachula.
O difícil, depois, é enfrentar outra vez a rotina do dia a dia.
- Passei seis meses quase sem falar com as pessoas, de tanto que me acostumara à solidão ou à ouvir línguas que eu não entendia - conta Antônio Carlos.
Foi um processo difícil também para Shalma, a namorada que não tinha certeza de sua volta ("ele saiu daqui apenas com a passagem de ida") e se assustou ao encontrar na sua frente um rapaz barbudo, com uma fita no cabelo e uma imensa águia tatuada no braço esquerdo.
Até que um dia voltou a ser o Antônio Carlos que as pessoas conheciam. Retornou ao emprego, colocou terno e gravata e saiu em visitas diárias aos clientes. Mas os clientes adoram conversar sobre a viagem e, como todos os que foram, ele também quis voltar. Em janeiro passado, cinco meses depois do casamento com Shalma, pôs novamente a moto na estrada, com dois amigos, e enfiou-se pela Cuiabá - Porto Velho, debaixo de chuva. No meio do caminho, a surpresa: encontraram outro motociclista e seguiram juntos. Era ninguém menos que João Gonçalves Filho, o mesmo Gaúcho que agora sonha com uma foto na Praça Vermelha.

VIAGEM, UMA ANTIGA FANTASIA

O gosto pela aventura é uma das características mais primitivas do homem, segundo o psiquiatra Mauro Moore Madureira. O desejo de andar, ver novos lugares, procurar outras maneiras de viver, tem acompanhado toda a história da humanidade. Ele cita as conquistas marítimas e a mais recente exploração do espaço:
- É difícil, para muitas pessoas - ele diz - aceitar as limitações impostas pelo bege - pálido, pelo cinza - depressão que, muitas vezes, faz parte da vida rotineira. Uma aventura é procurar o azul - paz ou o verde - liberdade. É uma maneira de experimentar os próprios limites, e alargar a plataforma de segurança que cada um tem.
E isso, sempre na análise do psiquiatra, está diretamente ligado a fantasia que cada um faz das viagens, de aventuras. É como se as partes de cada um estivessem espalhadas por aí, e em uma aventura surgisse à oportunidade de se experimentar em situações novas, tentando encontrar e compreender o desconhecido que também existe no mundo interior de cada um.
E mais, segundo Madureira, fazer essa viagem de moto, ou ainda de bicicleta que depende do esforço das próprias pernas, é procurar o máximo de liberdade para tentar se reorganizar internamente. O lado negativo de uma aventura é o aspecto da fuga, de querer livrar-se de algumas pessoas ou circunstâncias que nem sempre são fáceis de enfrentar. O aspecto positivo, Mauro vê na disposição de suportar a solidão, o novo, e a oportunidade de se auto compreender melhor. Assim, quando se volta ao local habitual - tanto geográfica quanto psicologicamente - é possível se mostrar uma nova pessoa, ou pelo menos ter uma nova perspectiva do cotidiano.